Cordel

Circo de interior

Circo de Interior

Circo de interior
é um circo diferente
numa mistura de bicho
meio frio e meio quente
debaixo do mesmo pano
o mesmo palco é o trono
do bicho que vira gente.

Nas terras de Araripina
chegou um circo decente
não tinha a lona de cima
de noite não era quente
o vento rodopiava
e a saia levantava
das mocinhas inocentes.

O palhaço era Maniva
tinha o cabelo de fogo
manquejava de uma perna
dizem que só tinha um ovo
mesmo assim era tarado
não podia ver viado
sentado no mei do povo.

Tinha duas dançarinas
pareciam dois bujões
não havia uma cintura
pra amarrar os cinturões
mesmo assim eram rumbeiras
rebolando pelas beiras
em cima de dois caixões.

Tinha um tecladista cego
tocando desafinado
uma hora parecia
um Bitôve arrepiado
quando o baterista errava
o cego se arretava
gritava todo afobado.

Depois vinha o trapezista
com sua malha furada
sua magreza sofrida
numa idade avançada
que pra subir no trapézio
era o trabalho mais sério
daquela alma penada.

Lá depois de muita ajuda
o trapezista subiu
em um balanço de corda
que até o mastro ringiu
balançou-se meia hora
e o povo que tava fora
sem saber lhe aplaudiu.

O tarol poe-se a rufar
chamando toda atenção
para o show daquela noite
do trapezista de então
que depois de embalado
e o pau da corda quebrado
caiu a merda no chão.

O leão se acordou
co´a zoada que se fez
abriu a boca e deitou
pois não era sua vez
quem caiu era tão magro
não provocava seu faro
não valia uma pedrês.
Tiraram o trapezista
o cego nem isso viu
tocava “besa mucho”
em espanhol do Brasil
quando entrou no tablado
um bicho todo amarrado
era a macaca Bibiu.

Primeira vez que se via
nas terras de Araripina
uma macaca feiosa
com uma perna mais fina
cum chapéu de barbicacho
uma orelha pra baixo
a outra orelha pra cima.

Se não dissesse o que era
ninguém iria saber
que aquilo era macaca
depois de tanto sofrer
na boca não tinha um dente
amarraram a inocente
pra enganar quem lhe vê.

E quando desamarraram
a bichinha deu um pum
um vento que não saía
em mais de um mês de jejum
e ela ficou contente
e o fiofó ficou quente
quando soltou 31.

A festa quase acabou
com aquela fedorenta
pulando e soltando pum
com todos tapando a venta
e só não matou ninguém
pois o pum depois de cem
nenhuma vida agüenta.

O leão já mei cinzento
dessa vez amarelou
acordou-se embriagado
dos ares que respirou
perguntou para Bibiu
se ela também sentiu
um cheiro assim de fedor.

Bibiu disse pro leão
levante cumpáde rei
pois logo depois de mim
é chegada sua vez
se você não agüentar
peça para lhe soltar
pois você só tem 3 mês.

Naquela noite de festa
no poleiro se sentava
dois amigos dum aleijado
que ali acompanhava
esse circo competente
entre mortos e viventes
o leão apresentava.

Um leão amolecido
magro esfomeado
com honras e alaridos
foi ao povo apresentado
numa jaula enferrujada
numa coleira safada
que não segurava nada.

E agora o tarol rufou
dessa vez acompanhado
de um corneteiro novo
muito mais desafinado
que assustou o leão
saindo pelo portão
do gradil enferrujado.
O corneteiro correu
o tarol caiu furado
o cego se levantou
abraçado no teclado
e as duas dançarinas
em duas poças de urina
com o baterista de lado.

O povo todo assombrado
disparou pra empanada
a poeira levantou
a visão foi embaçada
e o aleijado então
ficara na solidão
no meio da presepada.

Gritava um para o outro
os amigos do coitado
no meio da fulerage:
Pegue logo o aleijado!
E nesse querer viver:
Deixe o leão escolher!
Gritava o condenado.

O leão amedrontado
não agüentou de emoção
desvanecido caiu
mortinho do coração
e ainda hoje no céu
pergunta a Gabriel
qual foi sua maldição.

Nunca mais tive notícias
desse circo voador
eu só sei que de leão
nunca mais foi comprador
e os gatos das cidades
nunca vão sentir saudades
desse bicho comedor.

O aleijado escapou
foi homem de muita sorte
ficou só ele e o leão
que fraco não dava um bote
enquanto todos corriam
ele ali chorava e ria
por escapar de uma morte.

Eu perdi o meu patrão
e meu trabalho fecundo
um monte de conhecidos
três amigos num segundo
que depois desse entrevero
ninguém sabe o paradeiro
inda tão no mei do mundo.

Nunca mais verei um circo
com a lona só nos lados
nunca mais verei leão
com a fome do finado
só não quero ver Bibiu
a macaca que me viu
respirar dentro de um saco.

Se você se encontrar
na frente de um circo assim
por favor me telefone
mande um emei pra mim
qu´eu quero me recordar
no poleiro me sentar
c´um leão só para mim.


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Capa do Cordel Mói de Vagabundo

Mói de Vagabundo

Eu num sei porque bixiga
cupim só dá em madeira
deveria dá em gente
comendo assim pelas beira
livran´esse nosso mundo
de um mói de vagabundo
que só pensa em roubalheira.

É muita cara-de-pau
um magote de safado
ter sentado numa escola
uma vaga ocupado
pra dispois passar a mão
e viver feito ladrão
e de doutor ser chamado.

Eu mesmo num sei mais não
só queria entender
como é que uma família
cum seu jeito de viver
educa o destinatário
pra virar um salafrário
que bota o povo a sofrer.

Inda fica orgulhosa
dizendo pra todo mundo
que tem um filho bonito
com saber muito profundo
e que hoje é deputado
sem saber qu´ele é safado
um eterno vagabundo.

É triste ter que ouvir
uma mãe tão enganada
defender um tribufú
das urêia encarnada
de tanto mamar na teta
de viver só de espreita
da nação arreganhada.

Eu aqui acho é pouco
o povo nunca quer ver
pra escolher deputado
que tem honra no viver
é preciso muita luta
pois o cargo se disputa
no dinheiro de correr.

Tem um ditado que diz
pro mundo ficar lascado
é preciso dois jumento
um em pé outro sentado
um dizendo como é
que ele quer o cabaré
com o outro bem calado.

Eu num sei por quanto tempo
tenho ainda de esperar
que o jumento assentado
sinta seu rabo coçar
e levante da preguiça
olhando pra injustiça
de seu jeito de votar.

Quem sabe juramentado
de um novo bem saber
cum o rabo já coçado
sem a perna se tremer
ele aprenda a lição
que é numa eleição
a chance de se eleger.

Eleger o próprio, não!
o camim mal começou
eu num sei qual o pecado
da desgraça do estupor
que malassina seu nome
já dá nele uma fome
de já ser governador.

Hôme! Lá dê-se o respeito
pegue já o seu atalho
primeiro seja eleitor
um macaco de seu galho
num queira passar os pés
você num vale dois réis
nessa mesa de baralho.

Os eleito me perdoe
ser aqui muito sincero
a maioria da casa
tanto baixo e alto clero
chegou aí de trivela
sendo hoje essa mazela
cum o mesmo lero-lero.

Mundiça! Tome vergonha
deixe de atrapalhar
um país que quer crescer
um povo que quer sonhar
com um futuro melhor
pegue lá seu fiofó
vá pro inferno coçar.

Seja sua serventia
essa sua fulerage
vá de ladeira abaixo
se for capaz de corage
o diabo que te carregue
muntado em riba dum jegue
celado de mudernage.

É esse o teu destino
num venha cum latumia
teu caso num tem remédio
quem disser que tem é fria
pois nunca vi um ladrão
ter calo no mei da mão
ou se acordar cum o dia.

Mas tu vai te arrepender
é pena ter sido tarde
o inferno vai cobrar
cada pedaço de carne
e ainda vai ter troco
e no teu buraco oco
vai ter pimenta que arde.

Eu só queria que um dia
o diabo dissesse assim:
quem tiver cum a molesta
chei de dente no fucim
comendo o que é dos outro
tem vaga pra capiroto
aqui bem junto de mim.

Eu mandava ajuntar
dum lugar que eu conheço
um balaio de ladrão
para servir de começo
juro que esborrava
de safado espirrava
o salão do endereço.

Parece que tou te vendo
cum o rabo entre as perna
acuado pelos canto
de tua casa paterna
pedindo abença o cão
dizendo ser bom ladrão
e o mundo é que num presta.

Ora se eu bem soubesse
se lá o diabo aceitava
receber antencipado
a corja que aqui roubava
eu ficaria cansado
vesgo, estrupiado
pro inferno eu empurrava.

Deixava o roçado limpo
a erva daninha morta
plantava a mãe justiça
bem no meio dessa horta
e o mundo vacinado
com um muro levantado
pra ladrão nunca ter porta.

Mandava passar um cal
no terreno da roubança
pegava aqueles dois pratos
testemunhas da lambança
derramava racumim
tocava fogo em tudim
até mesmo na lembrança.

Ficando lá de vigia
uma trinca de punhal
na hora que o mal viesse
a capada era geral
cabôco ruim num vingava
os ladrão se acabava
bem antes de virar pau.

Por certo esse país
precisa se acordar
precisa tomar vergonha
precisa saber votar
pois quem tem o seu ladrão
num reclame outro não
merece se estrupiar.
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Autodidata

Sou apenas um poeta
de letras ajuntador
não completei a escola
me ocupei trabalhador
mas não sou ignorante
de leitura interessante
nisso sim me fiz doutor.

Um doutor de entender
da vida sua grandeza
do mundo e seus confins
do belo a realeza
da rosa em seu carmim
da pureza de um jardim
ultrapassando a beleza.

Um doutor de entender
que a vida pura e bela
é um céu azul e branco
é um sítio sem cancela
uma canção entoada
uma vida derramada
e a gente em cima dela
Um doutor de entender
que tudo que vai tem volta
de um bicho que se prende
de outro que assim se solta
no ciclo da inspiração
em sua respiração
que no mundo não se esgota.

De entender que o destino
parece querendo ser
uma coisa já traçada
aquilo que tem que haver
pois não existe uma praça
o seu ar a sua graça
se não houver um querer.

Portanto sei entender
que a vida que aqui se tem
o tudo que aqui se faz
se projeta muito além
não vivemos numa estrada
como rota já traçada
a vida não é um trem

É preciso se buscar
no meio do existir
em tudo que se pensar
no chorar ou no sorrir
que a vida é qual o vento
que povoa o firmamento
eternamente a fluir.
Toda cosmologia
tenta mas não explica
o teor de tudo ser
enfeita e até complica
a razão do seu querer
procurando conhecer
o tudo que multiplica.

Como toda vida é
um conjunto de ilusão
construída ela está
pelo pó em suspensão
e a cada sopro vai
se levanta e depois cai
em nova combinação.



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A Cruz da menina

A Cruz da Menina

Eu vou contar pra vocês
a história d´uma menina
que nasceu lá no sertão
uma alma nordestina
e que teve sua infância
tirada na ignorância
de uma madrasta malina.

Seu nome era Francisca
Chiquinha devia ser
uma menina querida
com as irmãs a crescer
quando uma seca maldita
lhe fez a pior desdita
botando tudo a correr.

Foi aqui na Paraíba
que o ocorrido se deu
lá em Patos de Espinharas
foi bem lá que aconteceu
essa história interessante
dessa família penante
e que até já morreu.

Quem nasce lá no sertão
duas coisas pode ter
ou ser muito abençoado
ou ter vindo pra sofrer
ter vindo viver uma graça
ou pagar uma desgraça
na medida do viver.

Lá se conta uma história
de uma nordestinada
que nasceu só pra sofrer
desde o dia da chegada
a seca tirou-lhe o brilho
e a dor foi o seu trilho
de inocência apagada.

Uma família sem nome
sofrendo uma seca cruel
passando de arretirada
a pé debaixo do céu
confiou em adoção
uma filha do coração
a um casal bem fiel.

Para não morrer de fome
essa menina foi dada
a esse casal de nome
foi assim tão confiada
e partiram pelo mundo
o primeiro e o segundo
sem saber qual das estradas.

Neste sertão sem porteira
o sol faz sua seara
o mundo nos apresenta
dizendo logo de cara
que a vida nasce de cacho
quem quiser saia de baixo
em Patos das Espinharas.

Nessa ribeira querida
onde a beleza existe
na fulorada da terra
na vida que sempre insiste
sou obrigado a contar
no decorrer do narrar
uma história bem triste.

Em pleno século XX
no ano de 23
arreparem a tragédia
em outubro, 11 do mês
numa noite escurecida
Francisca perdeu a vida
vou contar só pra vocês.

Nasceu em família pobre
fugida de seca braba
um casal de arretirante
por amor a filha salva
e dando por doação
a filha do coração
para outras duas almas.

Domila e Absalão
o casal agraciado
em vez de criar Francisca
com amor e com cuidado
aproveitaram a questão
usaram da escravidão
cometeram esse pecado.

Francisca, pobre coitada
não podia nem brincar
vivia sua infância
somente pra trabalhar
olhando pela janela
c´uns olhos brincava ela
com as crianças do lugar.

Domila saiu à noite
foi buscar Absalão
deixando Francisca em casa
ainda lavando o chão
que depois de terminado
devia dar por fechado
janela, porta e portão.

Francisca se esqueceu
de fechar a tal janela
Domila quando chegou
estufou logo a titela
pensando qu´era ladrão
depois de buscar em vão
se lembrou loguinho dela.

Acordou a pequenina
debaixo de cacetada
com a trave da janela
lhe castigou de pancada
e sem a menor razão
tentada lá pelo cão
matou Francisca a paulada.

Embrulharam a menina
ainda de madrugada
e lá fora da cidade
entre pedras foi jogada
encontrada noutro dia
foi aquela agonia
e a Deus encomendada.

Botaram ali uma cruz
enfeitaram c´umas fitas
Justiniano passava
sofrendo uma seca maldita
e se botou a pedir
numa oração pr´ela ouvir
numa promessa bendita.

O pedido era de água
pro mundo não padecer
o que já vinha sofrendo
não deu outra, pode crer
água veio de montão
um mar saía do chão
o milagre era de ver.

Pelo milagre alcançado
necessidade suprida
Justiniano agradece
fazendo ser construída
uma Capela formosa
para a menina bondosa
por sua prece atendida.

Por conta dessa Capela
um parque ali se formou
abriu-se a boca do céu
pra terra esse anjo olhou
intercedendo por quem
rezando dizendo amém
precise do Criador.

Quem recebe um milagre
pedido numa oração
sabe do qu´estou falando
sabe dessa emoção
pois quem tem crença na terra
esperança não enterra
enquanto for um cristão.

Cheio dessa devoção
o romeiro agradecido
vem no parque humildemente
vem trazer em seu sentido
e assim como eu boto
deposita seu ex-voto
do milagre merecido.

Tem um dia todo ano
calendário da Igreja
que todo romeiro sonha
todo coração almeja
enfeitar todos os postes
festejar o Pentecostes
o fiel assim deseja.

A festa começa cedo
entra pela madrugada
procissão levando a Santa
o luzeiro na estrada
o romeiro agradecido
reza o terço no sentido
de Francisca abençoada.

A menina dessa cruz
inda não reconhecida
hoje é Santa do Povo
é fiel e é querida
e ao lado do sacrário
ilumina o santuário
de Maria concebida.

Foi escrava nessa terra
mas ganhou o paraíso
fulorou nosso sertão
aguou o mais preciso
deu perfume a nossa vida
nesse chão de tanta lida
com o ar de seu sorriso.

Francisca, nossa menina!
ajude nossos irmãos
rogai pelos desprovidos
amansai nosso patrão
enchei a vida de flores
recebei nossos amores
em troca desse sertão.


divisão para o texto explicativo

Construído pelo Estado em 1993, com o apoio da
Prefeitura de Patos-PB e sua Diocese, o Santuário da
Cruz da Menina se presta a lembrar a pequena
Francisca, morta no ano de 1923, adorada e vene-
rada nos dias de hoje como uma Santa do Povo.